2 de março de 2023

Euro digital: para onde vamos?

Cinco Dias

Possivelmente em outubro de 2023, o BCE irá decidir sobre a continuação ou não do projeto

José Manuel Tassara de León, especialista em Securities Finance da Sala de Tesouraria do Cecabank.

"Tanto pela liberdade como pela honra, pode-se e deve-se aventurar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode chegar aos homens". Esta citação de Miguel de Cervantes, retirada do Dom Quixote, poderia enquadrar-se nas intenções do Banco Central Europeu (BCE) de começar a investigar as consequências de iniciar um empreendimento como a gestão de dinheiro público digital. Começar a falar sobre o euro digital com uma citação do Dom Quixote pode parecer um pouco estranho, mas é necessário compreender a transformação que este pode trazer ao sistema monetário, bem como a sua evolução, para uma implementação bem-sucedida, tendo em conta as dificuldades envolvidas. Há uma conceção errada comum de que o euro digital é um instrumento concebido para os bancos, quando na realidade é uma medida defensiva do BCE preparar-se para o que pode acontecer no futuro. Não se trata de melhorar os processos atuais que, por enquanto, são fortes e sólidos.

Com base nas mudanças tecnológicas que se estão a desenvolver graças às novas tecnologias DLT (Tecnologia de Registo Distribuído) e blockchain, existe um risco real de perturbação no mercado financeiro tradicional. Estamos num processo de alguma liberalização do sector. A combinação de inovação tecnológica, liberalização e introdução da livre concorrência pode criar riscos para a soberania monetária e a estabilidade financeira na Zona Euro.

Desde que o BCE anunciou que estava a começar a explorar esta possibilidade, tem havido muita especulação sobre a sua conceção final. A realidade é que ainda nada foi decidido e a decisão de continuar ou não com o projeto é provável que seja tomada em outubro de 2023. O BCE deve estar preparado para combater a emergência de soluções privadas, tais como stablecoins e a concorrência de outros CBDC (Central Bank Digital Currencies). Estas alternativas desafiam o controlo da oferta monetária e das taxas de juros como transmissores da política monetária.

A defesa da soberania nos meios de pagamento é outra questão importante. Não é segredo que o Banco Central Europeu vê os meios de pagamento como um bem público a proteger, uma vez que são fundamentais para o sistema financeiro, e é verdade que existe uma dependência excessiva de soluções não europeias.

Uma das chaves para compreender os objetivos por detrás do euro digital provém da distinção entre dinheiro comercial e dinheiro do banco central. O dinheiro comercial pode ser entendido como dinheiro criado pelos bancos. Pelo contrário, a moeda do banco central é o dinheiro emitido e apoiado diretamente por um banco central e deve ser um "ativo sem risco". A nossa relação mais direta com o BCE é a nota física, que é fundamental para a estabilidade financeira na Zona Euro.

A emissão do euro digital não se destina a substituir o numerário, mas sim a complementá-lo. O BCE está ciente de que, com a evolução dos métodos de pagamento e a utilização reduzida de numerário, existe o risco de se perder o contacto direto com o retalhista. Esta é a entrega direta de dinheiro do banco central para continuar a servir como uma âncora de estabilidade financeira.

Há questões importantes como a inovação e o desenvolvimento de meios de pagamento eficientes, tanto em termos de tempo, como de custo. O euro digital parece ser suscetível de gerá-los, mas será que precisamos de mais um instrumento se o Eurosistema tiver desenvolvido transferências bancárias instantâneas? Este é um debate interessante, uma vez que as transferências instantâneas estão mais em voga do que nunca.

A Bizum, com uma quota de mercado de cerca de 60% em Espanha, demonstrou que uma redução de custos e tempo ajuda a melhorar a eficiência dos sistemas de pagamento. Poderiam os pagamentos instantâneos ser o empecilho para os CBDCs? Se os entendermos apenas como um meio de pagamento, é evidente que o são, mas as características do euro digital vão para além desta resposta defensiva, incluindo a utilização offline, a utilização de contratos inteligentes e a sua interoperabilidade com plataformas DLT. Estas características são difíceis de replicar em pagamentos instantâneos.

A banca poderá ser afetada pelas incertezas no seu status quo, que só se tornarão mais claras com o desenho final. As instituições financeiras arriscam-se a ser afetadas se a liquidez privada for parcialmente desviada para o dinheiro do BCE. A saída de dinheiro poderia levar a que parte do financiamento do depósito tivesse de ser transferido para o mercado de capitais, o que o tornaria mais caro.

Muitas incógnitas permanecem no ar. Como será concebido? Quem poderá distribuí-lo? Quem poderá programá-lo? Seja como for, só o tempo dirá se o que Dom Quixote viu foram gigantes ou moinhos de vento.

Contacto de Imprensa

Fale connosco