20 de fevereiro de 2020

Empréstimo de valores, um regulamento que ainda está pendente

Funds People
20 de fevereiro de 2020

Homero escreveu na Odisseia sobre o castigo de Sísifo, que consistia em empurrar uma enorme rocha até ao cimo de uma montanha e pouco antes de chegar ao topo, para concluir a tarefa, a rocha escapou-lhe das mãos, voltando ao início. Uma tarefa sem fim que se repetia uma e outra vez. Salvo as diferenças óbvias, não consigo pensar em melhor comparação para descrever a história dos empréstimos de valores das OIC, em Espanha.

Vale a pena recordar como, no início de 2008, a indústria espanhola de fundos de investimento esperava assistir ao fim de uma das suas principais desvantagens locais em relação aos seus pares no resto da Europa: a incapacidade de fazer um empréstimo dos seus ativos para acrescentar rentabilidade extra aos seus investimentos em benefício dos seus beneficiários. Contudo, o abalo causado pela falência do Lehman Brothers em setembro do mesmo ano impediu a conclusão dos trabalhos sobre o desenvolvimento regulamentar do empréstimo de valores das IIC.

Mais recentemente, em maio de 2018, houve uma última tentativa com uma consulta pública do Secretariado Geral do Tesouro e da Política Financeira que nos permitiu ser moderadamente otimistas. No entanto, mais uma vez, esta tentativa caiu no esquecimento. De forma que, até à data, não se registaram quaisquer progressos.

Por tudo o que foi referido anteriormente, a indústria de empréstimo de valores das IIC em Espanha tem ficado para trás, num mercado em contínua transformação. Enquanto no resto da Europa começam a surgir os primeiros intercâmbios de ativos em blockchain e cresce a aposta na digitalização, em Espanha a regulamentação ainda está atrasada nesta área. Globalmente, o nível de sofisticação desta operação está a aumentar. A utilização de agentes tripartidos simplifica todos os processos de avaliação, faturação e controlo de garantias. Além disso, a utilização de CCP (Câmaras de contraparte central) contribui para aumentar a segurança e a confiança neste produto, o empréstimo de valores.

Se aprendemos algo com o colapso do Lehman, foi a importância de uma gestão adequada das garantias, controlo do risco de crédito e diversificação suficiente das contrapartes. A própria definição de empréstimo de valores, vista como a "cedência temporária de ativos que se materializa na troca de uma garantia (em numerário ou noutros ativos) que protege o mutuante de um possível incumprimento por parte do mutuário", permitiu que esta indústria fosse um dos setores que melhor resistiu aos impactos da crise. Um exemplo de integridade, proteção e resiliência no novo ambiente pós-Lehman.

Desde então, o empréstimo de valores tem adquirido uma importância crescente. Longe fica a visão infeliz que o reduzia a uma operação destinada exclusivamente a cobrir posições curtas em ações. O potencial subjacente a este instrumento provou ser uma ferramenta com um enorme poder de adaptação, que se tornou um elemento fundamental do sistema financeiro atual.

O próprio Banco Central Europeu criou um programa de empréstimo de valores para corrigir o impacto do programa de recompra de ativos (PSPP, na sua sigla inglesa) na liquidez do mercado, o que facilitou o seu correto funcionamento. De igual modo, a Reserva Federal dispõe de uma ferramenta semelhante para evitar distorções no mercado e depositários centrais de valores, como a Iberclear, recorreram ao empréstimo de valores para minimizar o impacto que as falhas poderiam ter no bom funcionamento dos ciclos de liquidação antes da entrada em vigor da TARGET2-Securities.

Esta reutilização dos ativos não só proporciona liquidez ao mercado para o seu correto funcionamento, como em momentos de contração dos mercados financeiros (credit crunch), demonstrou ser uma ferramenta poderosa para obter financiamento. Tudo isto aliado à pressão regulamentar exercida sobre os bancos com a implementação dos requisitos de Basileia III, o empréstimo de valores tornou-se uma operação muito recorrente hoje em dia, em que as transações relacionadas com ativos de alta qualidade (HQLA, de acordo com a terminologia financeira) são as mais procuradas.

A regulamentação em prol da transparência teve um impacto direto nestas operações, aquando da introdução da obrigação de reporting de transações (SFTR), que fornecerá aos reguladores uma grande quantidade de informação sobre as transações contratadas. Tal como a EMIR e a segregação da Initial Margins para os derivados OTC irá exigir uma gestão ágil das garantias e, para isso, o empréstimo de valores será um elemento-chave. Também o surgimento da regulamentação sobre os Depositários Centrais de Valores (CSDR) conduzirá a uma necessidade ainda maior de papel para o bom funcionamento do mercado.

Para se compreender o que este mercado representa, devemos dar uma vista de olhos aos dados fornecidos pela ISLA (International Securities Lending Association) no terceiro trimestre de 2019, onde se estima que o valor total dos ativos disponíveis a nível mundial para empréstimos se aproxime dos 20,6 biliões de euros com uma utilização de cerca de 2,3 biliões de euros. Estes dados incluem ações, obrigações do Estado, obrigações privadas, ETF e ADR. Uma análise mais detalhada destes dados revela uma clara preferência do mercado pela constituição de garantias com outros ativos (67% das transações), em oposição à utilização tradicional de cash como garantia. Isto é explicado pelo impacto de saída de caixa nos rácios de liquidez a curto prazo (LCR) e pelas políticas monetárias negativas do Banco Central Europeu.

Dos cerca de 9000 milhões de euros por ano que esta indústria gera para os participantes, o mercado espanhol não consegue captar nada, apesar de ter um volume de ativos em IIC de 492 759 milhões de euros e cerca de 112 000 milhões de euros em fundos de pensões (de acordo com dados fornecidos pela Inverco em novembro de 2019). Para entendermos a sua magnitude, representa quase 50% do PIB espanhol em 2018.

A possibilidade de um retorno adicional aos beneficiários, num ambiente de taxas de juro negativas, aumenta a necessidade de uma normalização dos empréstimos de valores em Espanha. O facto de o volume de ativos disponíveis para empréstimo estar num nível quase recorde, demonstra a confiança do mercado neste modelo de negócio e a necessidade de gerar um retorno extra.

Deste modo, podemos resumir em três pontos-chave o que é fundamental para o correto funcionamento desta operação:

  • Gestão do risco de crédito.
  • Gestão de garantias.
  • Diversificação de contrapartidas.

Neste sentido, o banco depositário é a peça-chave, uma vez que desempenha um papel fundamental como garante, guardião e agente dos seus clientes. É nele que se devem apoiar ao iniciar esta atividade, tirando partido da sua experiência. Não há dúvida de que os depositários em Espanha estão perfeitamente preparados para assumir estas funções.

Talvez a criação de uma comissão de acompanhamento, onde os principais intervenientes e associações tornem claro o seu compromisso e onde possam discutir e partilhar as suas preocupações, possa ser um ponto de referência para a entidade reguladora.

O mercado e os participantes necessitam de mais progressos no sentido da consolidação de um mercado de capitais mais forte e mais autónomo na UE. Não é apenas uma questão de rentabilidade, mas também de tornar a indústria das IIC ainda mais atrativa, de forma a aumentar a canalização de poupança privada dentro de um quadro normalizado de segurança e homogeneidade regulamentar, que permita atrair um maior investimento transfronteiriço. Este seria mais um passo em direção à estabilidade, resiliência e competitividade do sistema financeiro da União Europeia.

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