Os textos definitivos dos quatro decretos reais que completam a reforma da lei deixaram de fora muitas propostas que constavam dos projetos publicados em setembro e que os especialistas queriam que tivessem sido consideradas.
No dia 19 de novembro, foram publicados no BOE quatro decretos reais que desenvolvem e completam a reforma da Lei do Mercado de Valores (LMV) e outras normas, como a Lei de Criação e Crescimento de Empresas, aprovada em 2022. Os textos definitivos deixaram de fora muitas propostas que estavam previstas nos projetos publicados em setembro. Essas melhorias não foram integradas devido às observações formuladas pelo Conselho de Estado sobre as limitações do poder regulamentar de um Governo em funções. Destes quatro decretos reais, dois deixam de fora propostas que o setor considera essenciais. Os participantes do XXIX Debate Legal FundsPeople debateram esta questão.
Elisa Ricón, diretora-geral da Inverco, admite que o novo Real Decreto 816/2023, que altera o Regulamento da Lei dos Organismos de Investimento Coletivo, “caiu como um balde de água fria no setor”, uma vez que “apenas contemplou o que constituía um ajustamento de lei ou a transposição de diretivas, mas havia muitos projetos em curso que ficaram de fora, como a flexibilização do regime de comercialização dos Organismos de Investimento Coletivo de Investimento Livre (OICIL), quando já muitas instituições tinham preparado os seus projetos”, afirma.
O projeto deste decreto real ajustava os períodos mínimos de permanência (lock-up), eliminando o atual limite quantitativo máximo de um ano e substituindo-o por períodos de permanência que poderiam ser adaptados à natureza específica e à liquidez dos ativos investidos.
Além disso, flexibilizava o regime de comercialização dos OICIL para investidores não profissionais, de modo a equipará-lo ao regime que a lei cria e cresce introduziu para as instituições de capital de risco. Neste âmbito, Francesc Cholvi, advogado da Garrigues, salienta que a restrição à comercialização dos OICIL, que investem em instrumentos de dívida junto de investidores não profissionais, não foi eliminada.
“Esta libertação era uma solicitação do setor. Muitas instituições aguardavam com grande expectativa”, explica Cholvi. “As medidas são insuficientes para responder às necessidades das instituições", acrescenta Leovigildo Domene, diretor da Deloitte Legal.
Falta de competitividade
Todas estas questões, e muitas outras, têm sido solicitadas pelo setor há anos. O facto de não terem sido incluídas não beneficia em nada o mercado espanhol. “Estamos a criar um setor apenas para investimento nacional, sem qualquer componente estrangeiro. Causa-me grande pena porque existem enormes diferenças competitivas em relação a outros países”, afirma Salvador Ruiz, sócio da Allen&Overy.
Uma opinião partilhada por Domene, da Deloitte Legal: “É necessário implementar medidas que já funcionam em países vizinhos, como é o caso do Luxemburgo, onde estes produtos têm liberdade de definição e de estruturação. Os veículos são criados de forma ordenada, eficiente e relativamente ágil”, afirma o advogado.
Há outro aspeto que também não foi incluído no que respeita ao regime de comissões e despesas. “A cobrança de comissões de custódia às entidades comercializadoras continua a ser limitada nos casos em que a entidade comercializadora pertence ao mesmo grupo que a sociedade gestora. "Esta situação representa uma oportunidade perdida para resolver a atual desvantagem comparativa, ao discriminar um tipo de instituições que são um dos principais motores do setor do investimento coletivo em Espanha, com os benefícios que proporciona aos aforradores ao facilitar o seu acesso a uma gestão profissionalizada”, sublinha José Carlos Sánchez-Vizcaíno, diretor de Supervisão de Depósitos do Cecabank.
Relativamente aos custos, Ruiz, da Allen&Overy, considera que “há demasiada obsessão com as retrocessões por parte do regulador, quando os níveis de eficiência do setor são bons”. Quando se obriga a baixar cada vez mais o preço, existe o risco de “mais automatização ou pior serviço”, recorda.
Um ponto de vista partilhado por Ricón, da Inverco: “As instituições estão num processo permanente de adaptação a inúmeras regulamentações que implicam custos mais elevados, como é o caso da sustentabilidade, a implementação da DORA, a liquidação T+1 que obriga a automatizar, etc. O compromisso de melhorar está em todas as regulamentações, mas a realidade é que a pressão descendente sobre os preços, aliada ao aumento dos custos, está a impulsionar a concentração do setor em toda a Europa, com o risco de apenas as grandes instituições conseguirem resistir”, alerta.
Questões pendentes
O Decreto Real que altera o Regulamento da Lei dos Organismos de Investimento Coletivo descartou igualmente a eliminação da exigência de um índice de liquidez de 1% para os OIC. “Perdeu-se outra oportunidade de harmonizar o setor espanhol com os das restantes jurisdições, sobretudo quando já dispúnhamos, desde 2022, do Guia Técnico da CNVM 1/2022, que se centra em dotar o setor de mecanismos de gestão da liquidez”, acrescenta Sánchez-Vizcaíno.
No Decreto Real sobre o Regime Jurídico das Sociedades de Serviços de Investimento também há questões em falta. “As sociedades gestoras procuram cada vez mais a assessoria como uma nova via de negócio. Para tal, por definição, têm de ser membros do Fogain. As quotas fixas de adesão constituem uma nova barreira à entrada das sociedades gestoras na atividade. Uma das disposições do projeto previa a redução deste montante anual fixo, mas esta proposta foi deixada de fora. É uma oportunidade de ouro perdida”, lamenta Cholvi, da Garrigues.
Agora, se quiserem incluir alterações a esta Lei do Mercado de Valores, o processo terá de ser iniciado, ainda que os especialistas esperem que tal seja feito com urgência. Neste sentido, Sánchez-Vizcaíno, do Cecabank, sugere que se aproveite a oportunidade para retomar o empréstimo de valores mobiliários para que os OIC espanhóis possam aceder aos benefícios oferecidos por este tipo de operações. Trata-se de uma prática permitida noutros países da União Europeia. ”De facto, a CNVM posicionou-se favoravelmente para avançar na harmonização europeia e ultrapassar a desvantagem competitiva de Espanha”, salienta. Ricón, da Inverco, recorda que “uma opção é alterar o artigo 30.º da Lei dos OIC e permitir diretamente que a CNVM regule o empréstimo de valores mobiliários, em alinhamento com outras autorizações já existentes na lei”.